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AMOR PROIBIDO

Matéria com base no livro de Laurence Rees - Auschwitz os nazis e a solução final.

 

A judia Helena Citrónová e o nazista alemão Franz Wunsch, soldado da SS no campo de extermínio na Polônia, se apaixonaram, em circunstâncias difíceis.Contra todos os possíveis prognósticos, a judia Helena Citrónová e o alemão Franz Wunsch, da SS nazista, se apaixonaram em Ausch­witz. A jovem estava lá para morrer. O jovem estava lá para torturar, vilipendiar e matar. Mas aconteceu o inesperado.

 

Helena, uma garota bonita, chegou a Auschwitz em março de 1942, oriunda da Tchecoslováquia. Uma dia, uma de suas maiores amigas, cansada de ver pessoas morreram, disse: “Não quero viver nem mais um minuto”. “Começou a gritar histericamente, tendo sido levada do barracão e assassinada pelas SS”, escreve Rees. Mostrar descontrole era quase uma “senha” para ser fuzilado.

 

Ao contrário, Helena queria viver, e muito. Por isso decidiu arranjar um trabalho no “Canadá” — lugar onde os objetos dos prisioneiros eram separados e repassados para os alemães. A jovem começou a trabalhar, mas uma kapo disse que não havia sido escolhida e pretendia denunciá-la à SS. Porém, no mesmo dia, comemorava-se o aniversário do alemão Franz Wunsch, guarda da SS em Auschwitz. A judia Olga disse que sabia dançar, mas os alemães queriam alguém para cantar.

 

Helena sabia, só que não queria cantar em alemão, mas, pressionada, teve de fazê-lo. Wunsch gostou e pediu bis. “E foi assim que ele reparou em mim e, a partir desse momento, acho que ficou apaixonado por mim. Foi isso que me salvou, o canto”, relata Helena.

Wunsch pediu à kapo para que Helena voltasse no dia seguinte, para trabalhar no “Canadá”. Se não tivesse dito isso à kapo, a jovem teria sido levada para o comando penal e, possivelmente, assassinada.

 

Informada de que Wunsch havia atirado num prisioneiro que fizera contrabando, portanto seria um homem violento, Helena disse que, ao menos no início, o odiava. Mas, no dia a dia, o integrante da SS a tratava com respeito. Ao sair de licença, mandou-lhe biscoitos. Ao voltar ao campo, passou-lhe um bilhete: “Amor, apaixonei-me por ti”. “Senti-me infelicíssima. Pensei que preferia morrer a estar com um homem das SS”, disse Helena a Rees.

 

No “Canadá”, Wunsch tinha um gabinete e procurava encontrar desculpas para ver Helena. Uma vez, chamou-a e disse: “Arranja-me as unhas para que eu possa olhar para ti durante um minuto”. A judia retrucou: “De maneira nenhuma. Ouvi dizer que você matou uma pessoa, um jovem”. Ele negou. Helena acrescentou: “Não me chame a esta sala… Nada de arranjar unhas, nada. Eu não trabalho como manicure. E agora vou-me embora, não sou capaz de continuar a olhar para si”. Empunhando a pistola, o alemão gritou: “Se saíres por aquela porta, não continuarás a viver! Qual é a tua ideia ao saíres sem que eu te dê autorização?”. A garota não se intimidou: “Dispare contra mim. Vá, dispare! Prefiro morrer a ter de participar neste jogo duplo”. A Rees, muito mais tarde, Helena confidenciou: “Ele amava-me, mas tinha ficado com o orgulho e a honra feridos”.

 

Depois de algum tempo, Helena percebeu que, num lugar em que era difícil contar até com os amigos, podia contar com Wunsch e, assim, sentia-se segura. “Esta pessoa não permitirá que me aconteça nada de mal”, acreditava. Ao saber que a irmã Rózinka e seus dois filhos estavam sendo levados para as câmaras de gás, Helena desesperou-se e saiu correndo. Informado do que estava acontecendo, Wunsch conseguiu localizá-la nas proximidades do crematório e disse para os colegas da SS que Rózinka era “uma trabalhadora excelente que desempenhava funções no seu armazém”. Em seguida, para disfarçar, começou a bater em Helena, alegando que não havia atendido a ordem de recolhimento obrigatório, e pediu: “Depressa, diz-me o nome da tua irmã antes que seja tarde demais!” Assustada, mas corajosa Helena disse: “Rózinka”.

 

Wunsch localizou Rózinka, no crematório, e a arrastou para fora, “alegando que era outra das suas trabalhadoras”. “As crianças morreram nas câmaras de gás.” Helena e as demais pessoas do “Canadá” mentiram para Rózinka que as crianças haviam sido levadas para um “jardim-escola”. Porém, ao perceberam que Helena estava “transtornada” com as perguntas frequentes sobre as crianças, as outras mulheres disseram a Rózinka: “Para de chatear! As crianças desapareceram. Estás a ver o fumo? É ali que eles queimam as crianças!” Em estado de choque, ela “não queria continuar a viver”. Helena teve de ser irmã, mãe e quase babá para garantir-lhe a sobrevivência.

 

As mulheres tinham inveja do “prestígio” de Helena. Uma bela mulher chegou a dizer-lhe: “Se o Wunsch tivesse reparado em mim antes de te ver, então, ele ter-se-ia apaixonado por mim”.

 

Ao poupar a irmã, Wunsch conquistou Helena. “Com o passar do tempo, a verdade é que me apaixonei mesmo por ele. Ele arriscou a vida [por mim] em mais de uma ocasião.” Mesmo assim, a relação permaneceu platônica todo o tempo. “A relação entre os dois consistia em olhares, palavras ditas apressadamente e troca de mensagens escritas”, anota Rees. “Ele costumava virar-se para a direita e para a esquerda, certificando-se de que ninguém poderia ouvi-lo. Dizia-me: ‘Amo-te’. Eram as palavras que faziam com que me sentisse bem naquele inferno. Davam-me coragem.

Eram apenas palavras que traduziam uma espécie de amor louco que jamais poderia vir a ser concretizado. Naquela situação, e num lugar como aquele, não existiam planos que pudessem ser realizados. Não seria realista. Mas a verdade é que existiam momentos em que eu me esquecia de que era uma judia e que ele não era judeu. Sinceramente. E eu amava-o de fato. Mas nada daquilo podia a vir a ser realidade. Acon­teciam coisas ali, amor e morte — sobretudo, morte.”

 

Um amor que cresce, mesmo sem beijos e relações sexuais, acaba por ser descoberto. Nem amor platônico era permitido entre um integrante da SS — inimiga número um dos judeus — e uma judia. Helena e Wunsch foram traídos por um prisioneiro ou por um membro da SS. A jovem foi levada para o Bloco 11, o dos castigos. “Todos os dias me levavam para fora, ameaçando-me que, caso eu não lhes dissesse o que se tinha passado entre mim e o soldado das SS, matar-me-iam naquele preciso momento. Mantive-me firme, dizendo com insistência que não se tinha passado absolutamente nada.”

Detido, Wunsch foi interrogado, mas negou que houvesse ocorrido algo entre ele e Helena. “Assim, ao cabo de cinco dias de interrogatórios, ambos foram libertados. O ‘castigo’ de Helena foi agravado quando foi forçada a trabalhar sozinha numa seção dos barracões do ‘Canadá’, afastada das outras mulheres, enquanto Wunsch teve o cuidado de se mostrar mais circunspecto nos contatos que tinha com ela.”

 

Rees avalia que “a história da relação entre Helena e Wunsch é da maior importância. Porque os episódios demonstrativos da crueza das emoções ao extremo brutal do espectro humano — assassínio, roubo e traição — eram lugar-comum em Auschwitz. Uma história de amor é bastante mais rara. E o fato de o amor poder florescer naquelas circunstâncias, entre uma judia e um guarda das SS, é absolutamente espantoso. À semelhança do muito que aconteceu em Auschwitz, eram fatos que se fossem imaginados num trabalho de ficção seriam considerados como implausíveis”.

 

Mais tarde, quando os nazistas obrigaram os judeus a saírem de Auschwitz, nas chamadas marchas da morte, Wunsch mais uma vez demonstrou seu amor por Helena. “Quando ela, acompanhada da irmã, Rózinka, já se encontrava junto aos portões do campo, a tremer de frio, ele levou-lhe ‘dois pares de sapatos que lhe manteriam os pés quentes — botas forradas com pelo. Todos os demais, pobres criaturas, calçavam tamancos forrados com folhas de jornal. Ele estava a arriscar a sua vida [dando-lhe as botas]’.”

 

Ao entregar as botas, Wunsch revelou que “ia ser transferido para a frente de combate, mas que sua mãe, que vivia em Viena, olharia por ela e pela irmã porque no fim da guerra, por serem judias, ‘não teriam outro lugar para onde pudessem ir’”. O soldado da SS colocou “um pedaço de papel na mão de Helena onde escrevera o endereço da mãe”.

 

Entretanto, quando Wunsch se afastou, Helena pensou no que seu pai havia lhe dito: “Não te esqueças de quem és”. “Sou uma judia e tenho de continuar a ser uma judia.” Mesmo amando o homem, Helena não poderia perdoar o nazista e jogou fora o papel com o endereço da mãe de Wunsch.

Deixando Auschwitz, com ou­tras pessoas, Helena e Rózinka seguiram para o Ocidente. Era cada um por si e Deus contra todos (Deus não esteve em Auschwitz, segundo uma prisioneira). As irmãs viram muitos perecerem no caminho. “Quem quer que continuasse a viver — vivia. Quem quer que morresse — morria.”

 

Entre maio e junho de 1945, Helena e Rózinka circularam, sem rumo, pela Alemanha recém-libertada. As estradas estavam cheias de refugiados alemães. Os soldados do Exército Vermelho começaram a aparecer e se comportavam mais como conquistadores do que como libertadores.

 

“Eram como animais selvagens”, sintetiza Helena. Eles estupraram várias mulheres. “Helena escondia-se por baixo da irmã quando isto acontecia, na esperança de que ao verem a irmã, que era dez anos mais velha, sendo frequente as pessoas pensarem que era sua mãe, dirigissem as suas atenções para outro lado. Foi um estratagema que deu resultado. No entanto, ouvia tudo o que os soldados do Exército Vermelho faziam às demais mulheres: ‘ouvia gritos até que elas se calavam por não terem mais forças para lhes resistir. Houve casos em que foram violadas com tanta brutalidade que acabaram por morrer. Eles estrangulavam-nas. (…) Até ao último momento, nunca acreditamos que conseguíssemos sobreviver. Pensá­vamos que, embora não tivéssemos morrido às mãos dos nazis, iríamos morrer por causa dos russos’” (na verdade, soviéticos).

 

Certa vez, um soviético tentou estuprar Helena. Seu relato: “Não sei como consegui escapar a esse soldado russo tão cruel, a esse criminoso. Há muito tempo que ele não tinha relações sexuais e o resultado foi não ter sido capaz de me violar. Comecei a espernear e a mordê-lo, além de gritar a plenos pulmões, enquanto ele não parava de me perguntar e se eu era alemã. Respondi-lhe: ‘Não, sou judia e vim de um dos campos’. Mostrei-lhe o número que tinha tatuado no braço. Foi nesse momento que ele se retraiu. Quem sabe se ele próprio não seria judeu. Não sei o que ele era. Virou-se, pôs-se de pé e desatou a correr”.

 

Rees assinala que “a revelação de que mulheres, que já haviam sofrido tantos maus tratos em campos como Auschwitz, foram violadas posteriormente pelos seus libertadores [soviéticos], acrescenta um nível de náusea à história que não existia antes”.

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